segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Cristãos e política


Cristãos e política
Ricardo Gondim
No calor da Constituinte de 1988, o Jornal do Brasil publicou um longo texto com denúncias gravíssimas sobre o comportamento da então incipiente bancada evangélica. Religiosos estariam aliados à direita no chamado Centrão. Havia indícios de que evangélicos estariam se vendendo por emissoras de rádio, cargos para apadrinhados de pastores e por dinheiro. Segundo o jornal, os interesses maiores do país ficavam em suspensão para que as igrejas ganhassem o direito de “transmitir a Palavra de Deus”. Eles queriam, assim, salvar o Brasil. Naquela época, pensei comigo mesmo: a aventura evangélica na política será um desastre, uma tragédia.
Aquela bancada era, relativamente, pequena; entretanto, a paranóia que justificava sua existência, enorme. Corria, nas congregações, o boato de que a Igreja Católica desejava mudar a Constituição para favorecê-la. Era, portanto, uma questão de sobrevivência. Os crentes precisavam ter o maior número de políticos para fazer frente à sanha do Vaticano de comandar o Brasil. Obviamente, tais rumores eram falsos – tão fajutos como um relógio Rolex de 25 reais. Na avidez no poder, nenhum pretexto é sórdido demais e nenhuma mentira, nefasta demais.
Depois, o Brasil se viu dividido entre Collor e Lula. Já em 1989, pastores, bispos e missionários passaram a identificar o nordestino sindicalista como o “sapo barbudo comunista”. Edir Macedo não aliviou. Sua metáfora era peçonhenta: “O diabo tem quatro dedos na mão e a língua presa”. Anos depois, já no governo petista, o discurso do medo tornou-se menos negativo. Agora, para fermentar a candidatura de evangélicos – na verdade, meninos e meninas de recado de caciques denominacionais – propagandeava-se: “O Brasil precisa de homens e mulheres convertidos e batizados. Os santos, em cargos importantes, salvarão a pátria”.
Esses projetos, obviamente, não passavam de oportunismo. Não havia consistência ideológica, teológica ou programática nessas candidaturas. Os interesses comezinhos, rasteiros, queriam riqueza e visibilidade. O impulso religioso converte-se, facilmente, em desejo de poder. E deu no que deu. Atualmente, os evangélicos passam por vergonhas históricas: a cassação do Cunha, o batismo do Bolsonaro no Jordão e as inúmeras ações de improbidade e roubo. Não faltam, inclusive, tráfico de armas, lavagem de dinheiro e assassinato.
Pensando em teologia política, o que faltou ao discurso evangélico que evitaria esse desastre tão magnífico? Desde o Gênesis, o exercício da política nunca foi imperativo dos redimidos, eleitos ou escolhidos. O mandado de cuidar da vida antecede à Queda. A ordem para que o mundo (Paraíso) fosse governado, bem tratado, veio antes do pecado de Adão. (Preciso me fazer entender entre os crentes; digo, portanto: para que haja justiça não é necessário existir gente salva; bastam homens e mulheres íntegros).
A obrigação cidadã, não religiosa, de construir um mundo justo independe dos pastores. O poder de governar deve ser exercido por qualquer pessoa que respeite a lei e se oriente pela justiça. A política busca, sem os cabrestos dos credos ou das afiliações religiosas, cuidar para que os direitos de cada pessoa sejam respeitados e para proteger quem sofre processo de opressão. Pelos portões de uma nação justa, entram e saem os que não seriam bem-vindos nas catedrais. O Estado deve descomprometer-se dos interesses religiosos. Santo Agostinho tratava como “pagãos virtuosos” aqueles que se mostravam mais aptos para governar que os próprios “santos”.
Um religioso não possui, necessariamente, a melhor resposta para os dilemas que afligem a sociedade. Defender posição política como se defende um dogma teológico, além de não indicar solução nenhuma, gera fanáticos. Terroristas religiosos, prontos a se explodirem, deixam isso claro.
O verdadeiro preparo para a política não se dá nos bancos de igreja, mas no exercício da cidadania. Cantar, pregar e ser capaz de ensinar na Escola Dominical não garantem bons políticos. O que possibilita a boa política são debates em ambientes democráticos – até mesmo nas igrejas – em que as ideias são contestadas, provadas e depois colocadas em prática.
O Estado Laico (as maiúsculas são de propósito) é o caminho que nos resta. As próprias igrejas se saem melhor quando não há censura, patrulhamento ou fiscalização do Estado. Ao se aproximarem novas eleições, sugiro: não vote em ninguém que antecipe o nome com um pastor, bispo, irmão, missionário, diácono ou presbítero.
Não tenho dúvidas: o laicismo é frágil – uma teocracia à brasileira seria exponencialmente pior.
“O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos… mas o meu reino não é daqui” [João 8.36]
Soli Deo Gloria 

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